reportagem especial

VÍDEO: 'caí e ele e continuou a me bater, a dar mais chutes e socos', relata ciclista espancado por motorista

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Foto: Pedro Piegas (Diário)

Enquanto se recuperava em casa, após um espancamento cometido por um motorista de um carro que parou na VRS-304, na Estrada Norberto Kipper, e o atingiu com socos e chutes quando pedalava pela via, o professor Ricardo Bergamo Schenato, 36 anos, dividia o tempo entre atividades de trabalho remoto e a leitura de La strada del coraggio, em português, O caminho da coragem. Schenato, que acredita em justiça social e nos pequenos atos de gentileza, encontrou-se na história de um livro de não-ficção que narra a jornada de um ciclista humanitário. O personagem Bartali é uma criança pobre da Toscana que conquista carreira como ciclista profissional. A trama se destaca pelos esforços do ciclista para ajudar grupos politicamente direcionados na Itália da Segunda Guerra Mundial, incluindo contrabando de documentos de identidade falsos, além de abrigar uma família judia.

No dia 20 de abril, duas semanas após o incidente, Schenato recebeu o Diário na casa onde vive com a família. Por cerca de uma hora, ele falou sobre o momento da agressão, o que vivenciou nos últimos dias e as percepções após sofrer um ato de violência e covardia que também atinge outros ciclistas da região. Há poucos dias, em 11 de maio, o ele tirou o pino do ombro lesionado e deu início à fisioterapia.

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CICLISTAS SOB AMEAÇA: OS PERIGOS E A VIOLÊNCIA CONTRA QUEM PEDALA NA REGIÃO

Acompanhe:

Diário de Santa Maria - Quais foram as circunstâncias do que aconteceu no dia 6 de abril?

Ricardo Bergamo Schenato - Naquela manhã, eu saí de casa para fazer um treino rápido, pois eu tinha um compromisso às 9h. Eu fui até o Trevo do Pastel, aquele que vai para Silveira, indo por Arroio Grande. Lá, fiz o retorno e estava voltando. Na última subida do trecho, próximo à entrada dos balneários, levei um "fino". Aí, o cara passou de carro bem rápido por mim, a menos de 20 cm, raspando. Senti o vento do carro, mas não desequilibrei. Quando ele passou, fiz o sinal tradicional de ciclista que é estender o braço para dizer que tem de manter a distância regulamentar e segui pedalando, até porque estava pedalando em pé na bike e nem tinha como gesticular muito. Não sei se ele se ofendeu. Quando cheguei na parte de cima, onde tem uma parada de ônibus, vi um carro parado parado e alguém no meio da pista. Pensei: é o cara que me deu o fino e vai querer encrenca. Vou tentar passar por ele e ir embora, não vou ficar discutindo na rua. Acelerei e dei o que chamamos de "sprintada". Quando passei, ele me acertou um soco, rodei por cima da bicicleta e caí com o peso do corpo sobre ombro e bati a cabeça. Ele veio e continuou a me bater, a dar mais chutes e socos.

Diário - E tu chegaste a pedir por socorro?

Schenato - O que fiz primeiro, por instinto, foi colocar a mão no rosto para me proteger. Uma cena que ainda tenho eram as pancadas no capacete. Ainda assim, ele acertou um soco ou chute no olho e me deixou roxo. É um troço bárbaro, eu ainda fico "mexido de falar"... Eu gritava: socorro, socorro, alguém me ajude. Por sorte, estavam vindo outros três ciclistas que vinham no sentido contrário e começaram a gritar: para com isso, para com isso, e vi cessar a agressão. Sinceramente, eu não sei até quando ele ia ficar me batendo. Pensando bem, se não fossem os outros ciclistas... Acho que foi o que me salvou, pois poderia ter acontecido coisa pior. Ajudaram-me a levantar e, aí, eu perguntei ao motorista: cara, por que tu fizeste isso? E ele: tu querias o quê, que eu colocasse os carros nos tachões? Aí, ele foi embora, e eu liguei para minha esposa me buscar. Ela me levou para o pronto-atendimento.

Diário - E tu precisou ficar hospitalizado?

Schenato - No PA, fizeram um raio-x e falaram que era caso cirúrgico. Isso aconteceu na terça. Na quarta-feira, fiz exames e todo pré-operatório. Fui para o bloco, fiquei intubado em meio a tudo que a gente vêm escutando hoje (pandemia). Eu arrebentei os seis ligamentos do ombro esquerdo. Desses, cinco consegui "ligar" e um esfacelou, e terei de conviver com isso. Ainda não sei se ficarei ficar com restrição de movimento, o que é uma possibilidade, segundo o médico. Coloquei um pino e farei de seis meses a um ano de fisioterapia.

Diário - Fora essa agressão, tu já havia passado por alguma situação semelhante?

Schenato - Qualquer ciclista vai te dizer que já passou por situações como levar buzinaço, "tirar fino" para tentar assustar ou ouvir: rua não é lugar de bicicleta. A gente passa por apertos com frequência, mas longe disso (o espancamento), que foi algo totalmente desproporcional. E a minha conduta é como ciclista e motorista, pois sou os dois. Viajo, ando na cidade, corro, já participei de maratonas e estou sempre na rua. Sou motorista e sei da desproporcionalidade que tem entre veículos e pedestres. Os xingamentos são tão frequentes, e a gente não costuma revidar, só segue nosso treino. Até porque, no trânsito, o ciclista é fisicamente o lado mais fraco. Outra coisa que acontece são xingamentos contra homossexuais e de cunho preconceituoso só porque a gente usa roupas coladas para o ciclismo...

Diário - E tu já pedalavas há bastante tempo...

Schenato - Sim. Pedalo há 15 anos. Comecei no final da graduação e sempre pedalei em Santa Maria, ali onde aconteceu a agressão, e em outros locais. Já participei de competições de longa distância no Rio Grande do Sul, andando mais de 200 quilômetros. Tenho bastante experiência em ciclismo e alguns quilômetros rodados. Por isso, nunca imaginei passar pelo que passei.

Diário - Há uma investigação policial para apurar o que aconteceu. O que tu esperas depois disso tudo?

Schenato - Neste último ano de pandemia, todo mundo está estressado, e isso se reflete no trânsito, mas a gente tem de ter educação e se respeitar. Eu acredito que tem de passar por uma mudança de cultura no trânsito, sendo mais tolerante. Às vezes, a pessoa faz uma barbeiragem, mas não é motivo para agredir ninguém. A base, penso, é o respeito a todos: motoristas, ciclistas e pedestres. O que a gente também tem visto, nos últimos anos, é que quem deveria dar exemplo e ser referência, estimula resolver as coisa pela violência ou se arma para s proteger. Toda ideia quando posta em discurso justifica uma ação. Se começa a se ouvir isso, óbvio que vai se refletir em ações de violência e legitimação de atitudes. E tu nunca sabes se o agredido vai ser uma trabalhadora ou um atleta amador. Eu ainda acredito nas instituições e em meios para resolver conflitos. Isso é civilização. Fora disso, o que nos resta é barbárie.


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